Comunidade e Cultura Surda, LIBRAS e Deficiência: Uma reflexão sobre diversidade linguística e cultural

Comunidade e Cultura Surda, LIBRAS e Deficiência: Uma reflexão sobre diversidade linguística e cultural

Obs.: Optou-se pelo termo “Surdo” capitalizado em decorrência da escolha de uma parte da comunidade em ser representada dessa forma. 

 

A Agência Sabiá recebeu na sexta-feira (19) a tradutora intérprete de LIBRAS, Simone Miyashiro, para a sua primeira Sessão de Diversidade do ano. A iniciativa é uma forma da equipe se manter em contato com questões relevantes que incidem diretamente sobre a sociedade brasileira. A data foi escolhida também em decorrência de sua proximidade com  o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, que foi celebrado no domingo, 21 de maio.

Simone atuou em diversos projetos e eventos na cidade de São Paulo e, atualmente, faz a tradução e interpretação de aulas para pessoas Surdas em ambientes acadêmicos. 

A conversa girou em torno das problemáticas a partir das diferentes visões da surdez, da existência e atuação da comunidade Surda em uma sociedade majoritariamente ouvinte e da organização de tal comunidade a partir de uma língua, a LIBRAS. 

Para Miyashiro, partindo de uma abordagem que é voltada ao respeito à diversidade, empatia é importante, mas não é suficiente:

Não basta ter empatia. Temos que estudar e começar a aprofundar o nosso conhecimento para normalizar a nossa vivência com essas pessoas, fora e dentro do ambiente de trabalho. Não só pessoas Surdas, mas também todas aquelas com alguma deficiência”, recomenda a especialista.

A utilização do termo “surdo-mudo” é inadequada

Durante o evento, Miyashiro comentou que há um mito em torno da questão da surdez envolvendo o termo “surdo-mudo”. Por muito tempo utilizou-se esse termo para designar pessoas Surdas por acreditar que existia uma relação entre surdez e mudez. No entanto, pessoas Surdas não são incapazes de produzir som, tendo o aparato fonador, responsável pela produção fonética, perfeitamente funcional. Por conta disso, o termo correto seria somente “Surdo” ou “Surda”

A pessoa Surda pode vir a falar, se ela quiser realizar um tratamento fonoaudiológico. Então, a princípio, a surdez não vem acompanhada da mudez. Por isso, eles se identificam como comunidade Surda, pessoa Surda, e isso não é pejorativo,” explica. 

Diferentemente da mudez, que não é uma ocorrência tão comum, 10 milhões de pessoas são identificadas como Surdas no território brasileiro, o que equivaleria a 5% do total de nossa população, de acordo com os dados obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em seu censo de 2010. Nessa categoria, se encaixam pessoas com perda de audição leve, moderada, grave ou profunda, que é o caso em que já não se escuta nada ou praticamente nada. 

A visão geral sobre a surdez ainda é bastante pautada no modelo médico

À esquerda, o quadro de Oscar Pereira da Silva, intitulado “A palavra aos surdo-mudos”, indicando uma possível interpretação da razão do perpetuamento do termo. À direita, uma ilustração de um implante coclear, cirurgia realizada com intuito de neutralizar a surdez.

À esquerda, o quadro de Oscar Pereira da Silva, intitulado “A palavra aos surdo-mudos”, indicando uma possível interpretação da razão do perpetuamento do termo. À direita, uma ilustração de um implante coclear, cirurgia realizada com intuito de neutralizar a surdez. Fonte: Reprodução – Internet.

Em sua palestra,  Miyashiro evidenciou os dois modelos em que se podem enxergar as deficiências, com foco na surdez. Dentre elas estão o modelo médico, que parte do ponto de vista de que é uma incapacidade que pode ser aliviada ou neutralizada, e o modelo social, que enxerga a surdez como diferenças linguísticas e culturais.

A partir da difusão do modelo médico como padrão aceito, se estabelecem alguns pontos críticos e bastante prejudiciais para comunidades como a Surda. Primeiramente, elas passam a ser vistas como um desvio da normalidade, ou seja, passível de normalização. Isso gera uma visão de que essas pessoas dependem da ajuda de outras para integrarem-se à sociedade. LIBRAS, nesse foco, acaba sendo reduzida à língua deficitária, que serve como apoio para que essas pessoas possam se comunicar com a sociedade ouvinte. 

O modelo social propõe outro ponto de vista, partindo do pressuposto de que a comunidade Surda é composta por sujeitos independentes, capazes de gerar e produzir conhecimento assim como qualquer outra pessoa na sociedade. Nesse modelo, o ponto recai em sua categorização, já que passam a ser enxergados como uma minoria linguística, que apresenta diferentes —porém válidas— formas de se expressar e se organizar.

O “mito” da LIBRAS como segunda língua no Brasil

“LIBRAS é a segunda língua oficial do Brasil?” Questionou a palestrante, em determinado momento. Em meio a uma atmosfera de incerteza, algumas pessoas afirmavam que sim, enquanto outras diziam que não. 

Muitas vezes, é difundida a ideia de que a segunda língua oficial do Brasil é a LIBRAS. O motivo para isso é a lei nº 10.436/2002, que meramente reconhece a Língua Brasileira de Sinais como uma forma legal e oficial de comunicação no território brasileiro.  No entanto, Miyashiro esclareceu que LIBRAS não é a segunda língua oficial do Brasil. 

“A lei de LIBRAS não a caracteriza como uma língua oficial, e sim como um idioma possível de comunicação. Ou seja, há o reconhecimento de que ela existe, e só. Em países como Holanda e Canadá, que têm segundas línguas instituídas, as leis são escritas no primeiro e no segundo idioma. Nas escolas, são ensinados os dois idiomas. Aqui, isso não acontece com LIBRAS”, compara.

Para a especialista, mesmo que não sirva para institucionalizar a LIBRAS como segunda língua, a lei é um avanço e uma importante ferramenta para a manutenção e a sobrevivência da comunidade Surda enquanto comunidade linguística, pois mantém seus direitos linguísticos assegurados. “A mesma coisa não acontece com outras minorias linguísticas, como é o caso dos povos originários”, explica.

LIBRAS não é “mímica” e também não é universal

Em relação à Língua Brasileira de Sinais mais propriamente dita, Miyashiro desvela algumas afirmações retiradas do senso comum sobre a língua que não correspondem à realidade. Primeiramente, ela afirma, não podemos cair no mito de que a Língua Brasileira de Sinais é universal. Cada lugar do mundo possui sua própria comunidade linguística de sinais com suas diferenças culturais atravessadas, assim como qualquer língua oralizada, tal qual o Português, o Inglês e o Espanhol. 

A partir disso, é necessário dizer que a LIBRAS não é uma língua artificial. Isso significa que ninguém pensou e elaborou a língua, ao contrário, ela surgiu espontaneamente a partir da necessidade de uma comunidade linguística, como ocorre com parte majoritária das línguas naturais. Além disso, ela possui todos os aspectos linguísticos destas, como fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e etc. Inclusive, a aquisição da língua em crianças surdas ocorre da mesma forma que nas línguas oralizadas, quando expostas a um ambiente em que a LIBRAS é amplamente utilizada. 

Por fim, é necessário afastar a ideia de que LIBRAS equivale a gestos ou é mímica. Também, LIBRAS não é a versão da língua portuguesa em sinais. Ao contrário do que se possa imaginar, a língua de sinais e a língua portuguesa são completamente diferentes e não se baseiam uma na outra. 

Veja um pouco sobre os aspectos linguísticos das línguas de sinais que comprovam que se tratam de línguas naturais:

Cada um dos parâmetros indicados na imagem como exemplo.

Cada um dos parâmetros indicados na imagem como exemplo. Fonte: Researchgate

  • Configuração de mão: como sua mão está configurada; se aberta, fechada, com dois dedos levantados, etc. 
  • Movimento: que tipo de movimento se faz com as mãos;
  • Orientação da palma da mão: para que direção está apontada a palma da mão;
  • Ponto de articulação: em que local do corpo o sinal é realizado;
  • Expressões não-manuais: qualquer aspecto não impresso a partir das mãos ou de sua movimentação. Por exemplo, expressões faciais, postura, etc.

A comunidade Surda tem sua própria identidade cultural

Ao redor dessa comunidade minoritária linguística constrói-se também uma identidade cultural. Em São Paulo, por exemplo, há a Associação de Surdos de São Paulo (ASSP), fundada em 1954, com o intuito de reunir a comunidade e criar um espaço de trocas culturais. 

Hoje em dia, as associações continuam ativas promovendo eventos, festas (…) Muitas vezes, as associações oferecem cursos e a possibilidade de trabalhos voluntários, que é uma ótima oportunidade de conhecer as pessoas e essa comunidade.

No âmbito do esporte, Simone explica que surdez não qualifica pessoas para as paralímpiadas, muito pelos requisitos específicos que essa população precisaria nos jogos. Além disso, em alguns casos pessoas Surdas não se consideram deficientes, especialmente aquelas que nasceram surdas e/ou adquiriram a língua de sinais no período adequado do desenvolvimento linguístico. Logo, a comunidade Surda tende a organizar seus próprios eventos esportivos. Há inclusive a existência dos Jogos Surdolímpicos, organizados pelo Comitê Internacional de Esportes para Surdos.

Livros “Cinderela Surda” e “Rapunzel Surda”, tentativa de aproximar a literatura à identidade cultural da comunidade Surda.

Livros “Cinderela Surda” e “Rapunzel Surda”, tentativa de aproximar a literatura à identidade cultural da comunidade Surda. Fonte: Reprodução – Internet

A comunidade Surda é bastante ativa também na área literária. Especialmente em capitais, como São Paulo, há bastantes saraus e slams organizados por artistas surdos que apresentam poesias e obras originais construídas em Língua de Sinais. Ainda, há uma tentativa de recriar os clássicos contos de fadas aproximando-os da cultura Surda. 

Para quem tem interesse em aprender a LIBRAS ou até mesmo integrar atividades da comunidade Surda, Miyashiro recomenda consultar instituições como a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS).

Lucas Custódio

Lucas CustódioGraduado em Letras - Português/Inglês pela USP. Trabalha com redação há mais de 4 anos, com foco em Tecnologia e Carreira. É apaixonado por Storytelling, Literatura e Games.


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