Preconceito vs. inclusão linguística: mitos e formas de diversificar nossos discursos na segunda edição da Diversidade no Ninho

Preconceito vs. inclusão linguística: mitos e formas de  diversificar nossos discursos na segunda edição da Diversidade no Ninho

 

Na sexta-feira (29), as passarinhas e passarinhos da Agência Sabiá realizaram a segunda sessão de Diversidade no Ninho de 2023. Trata-se de uma ação interna de clima para que a equipe possa estar em contato com temas relevantes da sociedade, fomentando a construção de um pensamento mais crítico, amplo e empático. Nesta ocasião, o tema escolhido foi “Variação e preconceito linguístico: quebrando paradigmas para uma comunicação mais inclusiva.

Estiveram à frente da conversa duas pessoas da nossa equipe, ambas responsáveis pela escrita criativa dentro da Agência. Lucas Custódio, por sua formação em Letras pela Universidade de São Paulo e trajetória trabalhando com linguagem, abordou um tema muito discutido pela sociolinguística: os mitos perpetuados pelo preconceito linguístico. A segunda parte da conversa ficou por conta de Mariana Oliveira, comunicadora social e publicitária com vasta experiência na aplicação prática da língua portuguesa, que demonstrou como podemos utilizar a comunicação de uma forma mais inclusiva. 

“Na grande maioria das vezes, abordamos ‘diversidade’ a partir de pontos macro na sociedade, mas nos esquecemos de analisar outros que talvez não sejam tão evidentes e que podem contribuir para a sua compreensão na totalidade. Por não haver um debate consciente sobre as mais diferentes formas de preconceito linguístico, ele acaba por mascarar outras formas de preconceito que a nossa sociedade já reconheceu como inaceitáveis. Podemos dizer que uma pessoa com pouco domínio da gramática normativa é menos inteligente ou capaz que uma que recebeu essa instrução formal, por exemplo, contribuindo para ampliar o abismo social que já existe.” explica Custódio.

O preconceito linguístico e seus mitos

Com influência direta da obra “Preconceito Linguístico: o que é, como se faz”, de Marcos Bagno, durante a sessão foram abordados alguns mitos que continuam sendo perpetuados mesmo após a publicação do trabalho, em 1999. 

Antes de abordar os mitos propriamente, Custódio cria um adendo, evidenciando que precisamos nos atentar a dois pontos para melhor compreensão: primeiro, a língua apresenta um alto grau de variabilidade e diversidade que não consegue ser freado pela criação de regras gramaticais. Segundo, todas as pessoas, em algum nível, apresentam comportamentos que reforçam o preconceito linguístico de alguma forma, em uma base diária. 

MITO #1 – A Língua Portuguesa é uma só

É evidente que até mesmo quem não se insere diretamente no contexto de fala da língua portuguesa é capaz de perceber que ela apresenta variações. Porém, em certo nível, acredita-se que, mesmo com a rica diversidade de variações, a língua apresenta um “padrão” linguístico, representada pela norma estipulada e amplamente difundida nos ambientes acadêmicos.  

Na realidade, a ideia de um padrão linguístico para a língua portuguesa não é só um mito como também é completamente impraticável, tendo em vista que a variação que ocorre na língua é atravessada por diversos fatores, como temporalidade, localização geográfica, comunidades linguísticas, grau de escolarização etc. 

Ao acreditar-se que há um padrão, todas as outras variações (que são tão válidas quanto), acabam se posicionando à margem da sociedade, como uma forma não padrão e inaceitável. Esse abismo linguístico cria espaços sociais que não podem ser frequentados por quem não tem acesso a uma educação formal, ampliando a desigualdade social. 

MITO #2 – Português é muito difícil

Tal mito é o que talvez mais passa despercebido, muito pelo fato de que essa crença é resultado de um sistema de ensino de língua engessado e pouco prático. Acredita-se que a língua portuguesa é aquele recorte mensurado na escola, nos ensinos fundamental e médio, com nomes difíceis e formas gramaticais nunca utilizadas em uma frase corriqueira no dia a dia. 

A verdade é que toda pessoa que é falante nativa e que passa pelo seu processo de aquisição de linguagem de forma plena sabe utilizar todas as estruturas que a língua nos proporciona. Saber empregar uma língua significa conhecer e empregar com naturalidade as regras gramaticais básicas de seu funcionamento. Por exemplo, você jamais verá uma pessoa com português como língua materna dizendo algo como “O menino chegou aqui na semana que vem”. 

MITO #3 – Quem não tem instrução fala tudo errado

Um dos mitos mais prejudiciais, porém amplamente difundido, é o de que falar “errado” como equivalente à falta de instrução caminha lado a lado com a ideia de que existe uma variação do português que é “padrão”. Mas é preciso cautela ao tentar classificar algum fenômeno da língua como erro, uma vez que pode fazer parte de um processo linguístico que já está em vigor há séculos.

Como exemplo, foi utilizado o fato de um determinado grupo de pessoas substituir o “L” em um encontro consonantal por “R”, como ocorre em “bicicreta” (bicicleta), “pranta” (planta) e “chicrete” (chiclete). Apesar de ser uma variação associada a uma população carente, portanto, desprestigiada, o fenômeno é recorrente na história da língua portuguesa: chama-se rotacismo. Palavras como branco, fraco e prata — que são amplamente aceitas na gramática atualmente — originaram-se da mesma forma, a partir das formas blank, flaccu, plata.  

Logo, aceitar tais termos, mas rejeitar outros que passam pelo mesmo fenômeno fonético trata-se puramente de preconceito, não se tratando de uma questão linguística, senão política e social. 

MITO #4 – O certo é falar assim pois se escreve assim

No quarto e último mito, abordam-se noções que acabaram confundindo-se ao longo do tempo: a escrita e a fala. A fala é a maneira mais natural de expressão de uma língua. É como nos comunicamos na maior parte das vezes. Ela é muito mais fluida, logo, muito mais suscetível a variações. A escrita, ao contrário, foi criada como uma forma de representação dessa fala, assim, seria possível armazenar ideias e sentidos provenientes da fala em um padrão que seria compreensível para qualquer falante. 

Desse modo, é necessário compreender que a ortografia existe e deve ser respeitada para que seja possível compreender a linguagem escrita. Mas, a mesma “palavra” representada por caracteres pode ter diferentes variações fonéticas, levando a uma interpretação distinta. É como uma receita, é necessário seguir uma lista de ingredientes para alcançar o resultado, mas cada pessoa (ou grupo) tem sua forma de executá-la. 

É possível acabar com o preconceito linguístico?

Pode ser bastante complicado acabar com algo que está tão enraizado e difundido pelo sistema educacional. No entanto, ao conscientizar-se da existência do preconceito linguístico, há algumas coisas que podemos fazer para evitar perpetuá-lo. 

  1. Reconhecer que existe uma crise linguística, que também ocupa a esfera política e social;
  2. Ressignificar o conceito de erro gramatical, ao lembrar-se de que a língua varia e que grande parte dos movimentos que nasce espontaneamente da fala de nativos são fenômenos linguísticos;
  3. Mudar a atitude frente a episódios de variação linguística. 

É importante lembrar, contudo, que especialistas do âmbito da linguagem não querem promover uma espécie de caos gramatical, em que absolutamente tudo é válido. Ainda existem diferentes contextos em que diferentes facetas da língua devem ser utilizadas. Assim, devemos compreender que não existe uma fórmula mágica para todas as pessoas falantes de uma língua, e que deve-se respeitar todas as variações, pois elas fazem sentido em algum determinado contexto,” finaliza Custódio.

Como usar a linguagem e a comunicação como ferramenta para inclusão

No segundo momento da conversa, Mariana Oliveira traz em foco a utilização da linguagem como mecanismo reprodutor de significados sociais. A partir do momento em que um indivíduo nasce, ele é constantemente atravessado por sentidos e significados consolidados pela linguagem. Logo, Oliveira corrobora o conceito de que a língua, como manifestação da linguagem, é um campo de luta política. 

Mais do que contratar e ter uma equipe diversa, é sempre questionar-se o que as organizações estão fazendo de fato para que as pessoas se sintam incluídas. Parte dessa mudança acontece a partir de como posicionamos nosso discurso, afinal, mudando a língua, podemos modificar a nossa realidade. Isso se reflete no uso de uma linguagem empática e isenta de estereótipos e preconceitos”, explica Oliveira.

Os 5 pilares da comunicação inclusiva

Em prol de conseguir promover a inclusão por meio da linguagem, Oliveira apresenta 5 pilares que podem ser utilizados como alicerces para estruturar uma comunicação mais empática e inclusiva. 

1. Empatia

O primeiro dos pilares, a empatia, foi apresentado como a capacidade de compartilhar, perceber e se conectar com os sentimentos alheios, sendo capaz de enxergar a vida pelas lentes de outra pessoa. 

Muito me incomoda o termo ‘calçar os sapatos de outra pessoa’, pois não é isso que é empatia. Apesar do calçado ser de outra pessoa, os pés e a trajetória trilhada ainda são seus. Por isso, empatia é mais sobre entender aquilo que outra pessoa enfrenta a partir do seu próprio filtro de emoções e o que você pode fazer para se solidarizar com ela.

2. Técnica RASA

Apesar do nome, a técnica RASA não é nada superficial. Ela serve para demonstrar como podemos praticar uma melhor escuta e, consequentemente, promover uma comunicação mais assertiva. O termo é um acrônimo para Receber, Apreciar, Sintetizar e Perguntar (ask). 

  • Receber: diz respeito a como você se posiciona frente a outra pessoa e como demonstra que está recebendo a informação. Se a pessoa está se sentindo como se fosse a única no ambiente, então está funcionando. 
  • Apreciar: a apreciação vem por meio de pequenos sinais de que você está acompanhando o que está sendo dito. Podem ser interjeições, gestos com a cabeça e corpo etc. 
  • Sintetizar: ao invés de interromper o indivíduo para dizer algo, prefira esperar e sintetizar o que foi dito, com a intenção de adicionar sua posição e dizer o que entendeu do que foi dito.
  • Perguntar: são questionamentos levantados para demonstrar o interesse no assunto e, também, descobrir mais sobre o que se fala. 

3. Lugar de Fala

Lugar de fala é apresentado como um espaço subjetivo, muito abordado atualmente, que visa destinar a fala para indivíduos ou grupos que vivenciam diretamente o assunto do que se trata ou de reservar esse espaço para quem normalmente não têm oportunidades de ocupá-lo. É uma discussão sobre protagonismo e silenciamento dentro do campo do discurso.

Dentro da comunicação inclusiva, é importante o reconhecimento dos devidos lugares de fala, para não silenciar ou atravessar o discurso de uma pessoa que deveria estar ocupando aquele espaço, seja porque não tem oportunidades ou porque diz respeito à sua vivência enquanto indivíduo na sociedade. 

4. Comunicação neutra

É uma forma de estruturar o discurso que contempla pessoas que não se identificam nem com o gênero feminino, nem com o gênero masculino — logo, uma linguagem não binária. Ainda há diversas discussões de como essa comunicação deve acontecer, em prol de fazer com que seja acessível a todas as pessoas, inclusive àquelas que necessitam de leitores especiais por conta de deficiências visuais. 

Enquanto alguns grupos defendem a utilização do “e” como neutralização dos morfemas desinências de gênero (como o “todes”, no lugar de todos e todas), também é possível escolher construções inteiramente neutras já inseridas na língua portuguesa, como “É um prazer ter vocês aqui” no lugar de “Sejam bem-vindos”.

5. Linguagem não sexista

Outro ponto polêmico da gramática normativa da língua portuguesa é o fato de haver uma “masculinização” do gênero de indivíduos em plural ou a partir de determinados termos. Ocorre quando um grupo de pessoas é resumido a “eles”, mesmo havendo pessoas de outros gêneros presentes, ou quando “homem” é metonímia para “humanidade”, por exemplo. 

A adoção de uma linguagem não sexista é importante para desconstruir o imagético de que há apenas homens em posição de poder ou relevância. Ocorre quando uma equipe de profissionais de medicina é chamada de “os médicos”, mas um grupo de enfermagem é referido como “as enfermeiras”, sendo que ambos papéis são desempenhados por qualquer um dos gêneros. 

Ao final da conversa, Custódio e Oliveira fizeram um convite para que cada pessoa refletisse mais no espaço que a linguagem ocupa em seu cotidiano e em como contribuir para construir mais pontes do que muros nas trocas e relacionamentos interpessoais.

Lucas Custódio

Lucas CustódioGraduado em Letras - Português/Inglês pela USP. Trabalha com redação há mais de 4 anos, com foco em Tecnologia e Carreira. É apaixonado por Storytelling, Literatura e Games.


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